Se há alguma acusação recorrente contra o liberalismo é que seria uma corrente política ingênua, principalmente em relação ao uso da força. Veja, está em todo lugar. Segundo os supra-sumos da estratégia, civis invariavelmente morrerão no combate - não importa se o inimigo é o PCC, o Comando Vermelho, o Hamas, Saddam Hussein ou Hesbollah. Os liberais, ao exigirem algum tipo de controle na ação governamental, estariam enfraquecendo as forças de defesa e, sem querer, fortalecendo os inimigos.
Essa acusação é falha, e sob muitos aspectos. Em primeiro lugar, não somos contra o uso dos mecanismos de repressão - seja contra o crime comum, tiranos ou terrorismo. Não fazemos parte do credo humanitário, cujo principal expoente é Gandhi. O pacifismo desse sujeito era possível apenas devido à presença inglesa na Índia, que garantia a existência de algum tipo de ordem política liberal*. Tanto que Gandhi foi assassinado sim, mas por um radical indiano, nos anos que se seguiram à independência. É preciso lembrar que o mesmo Gandhi conclamou a Inglaterra e a Etiópia a se renderem de joelhos diante das ofensivas alemâes e italianas. O corolário do pacifismo militante é o triunfo da sociedade militarista: toda a energia que deveria ser lutada para construir uma sociedade pacífica que, invariavelmente, se utiliza da força para manter a ordem, é simplesmente jogada no ralo, pois todo exercício da força é visto como algo ruim. Ora, se os bons não se utilizam da força, quem vai utilizá-la senão os maus?
O liberalismo também acredita que os indivíduos são responsáveis pelos seus atos. Como bem definiu Hayek, isso não significa que os liberais neguem uma rede causal necessária que levou o indivíduo a agir de uma determinada forma, mas se traduz na crença de que o mesmo indivíduo pode agir de maneira distinta no futuro. Ser responsável pelos seus atos é poder aprender com os mesmos. Certas conseqüências são vistas como ruins e, portanto, serão futuramente evitadas. A punição a um crime possui muito mais um caráter preventivo do que realmente a intenção de realizar algum tipo de justiça*. Quando os crimes não são punidos de maneira regular, e a punição em relação a cometer um crime se torna uma loteria(ou claramente influenciável por relações de poder), o sistema de punição se corrompe e a violência explode. A igualdade perante a lei - eis o ideal que deve ser perseguido sempre, para evitar que o Estado seja raptado por interesses privados ou que o respeito à lei se torne mero cálculo econômico.
O liberalismo se distingue de outras correntes políticas, no entanto, pela sua extensão de responsabilidade individual aos executores do poder estatal. Se os indivíduso devem ser responsabilizados pelos seus atos, os agentes estatais também. Se existe uma suspeita de que um policial matou um civil em circunstância suspeita, esse caso deve ser muito bem investigado. E, nesse caso, ocorre um agravante: enquanto o envolvimento de civis na prática do crime leva a uma desmoralização muito mais pessoal do que da sociedade como um todo*, o envolvimento de um policial enquanto indivíduo não é uma lástima apenas para ele, mas para toda a polícia. Talvez seja esse o temor dos que condenam a ingenuidade liberal: a idéia de que a acusação militante à ação policial leve a uma desmoralização dos órgãos de repressão do Estado, e que a ordem pública se torne ordem criminosa.
Mas não é somente a acusação contra a polícia que diminui o respeito da população em relação a mesma; a própria ação policial que ataca civis de maneira indevida, se não for punida, provoca uma repulsa da população local contra a ação do poder público. Podemos ver, portanto, que é do interesse da própria manutenção da lei que os órgãos de repressão funcionem dentro dos limites que a mesma estabelece. Afinal, as funções da polícia são basicamente: impedir que um crime em andamento se conclua, prevenir que um plano criminoso seja executado ou prender pessoas foragidas/acusadas de algum crime. Qualquer tipo de ação que exceda as medidas proporcionais à execução dessas finalidades, ou que fuja das mesmas, deve ser punida, mesmo que seja cometida por uma autoridade do Estado.
Essa é uma primeira apreciação do problema. Existe uma outra, que foca menos na repressão e mais nas motivações estruturais que levam ao crime. Esse é um tipo de análise que os analistas conservadores, em sua maioria, falham em fazer. Se os indivíduos, em sua liberdade, engajam numa relação que é benéfica(ao menos subjetivamente) às duas partes, então não há incentivo para que uma das partes denuncie à outra na justiça. Portanto, ao proibir esse tipo de atividade(veja bem, não é regular, mas proibir), esses mesmos indivíduos terão incentivos inversos aos do crime comum: unirão esforços não para desfazer aquele tipo de relação(quem é assaltado tem incentivo em denunciar o assaltante), mas sim para garantir que ela se perpetue. É só observarmos o caso das drogas, por exemplo. Sim, os traficantes são criminosos, mas boa parte dos dinheiros que gastam com armas é oriunda da venda de drogas, e eles utilizam essas armas para garantir o fornecimento, distribuição e venda das mesmas(há também a questão de disputa entre traficantes).
Muito se diz que, com a legalização das drogas, os criminosos se engajariam em outras atividades como seqüestros, assaltos à banco e roubos. Só que aqui existe uma diferença gritante: quem está envolvido na relação possui incentivo para denunciá-los, ou seja, não fornecerá dinheiro para que os bandidos se fortaleçam, como no caso das drogas.
Vemos, portanto, que a própria legislação pode ser a origem de atividades criminosas. Nem sempre, no entanto, a proibição dessas atividades resulta num aumento da violência, O que ocorre, em vários casos, é que as mesmas passam a alimentar um câncer dentro do poder público, principalmente através de redes de corrupção. A lei passa a valer não mais para quem comete crimes, mas para os que não possuem "relações especiais" com os executores da lei.
Vemos, portanto, que a própria legislação pode ser a origem de atividades criminosas. Nem sempre, no entanto, a proibição dessas atividades resulta num aumento da violência, O que ocorre, em vários casos, é que as mesmas passam a alimentar um câncer dentro do poder público, principalmente através de redes de corrupção. A lei passa a valer não mais para quem comete crimes, mas para os que não possuem "relações especiais" com os executores da lei.
É essa degradação do poder público que pode ter um efeito, a longo prazo, muito maior do que propriamente a violência oriunda da proibição de uma determinada atividade, pois essa rede passa a alimentar a ação de outros pequenos meliantes, que passam a se aproveitar dessa rede de sublegalidade. Devemos ressaltar, mais uma vez, que os efeitos da regulação são totalmente distintos dos efeitos da uma proibição, e que seus impactos variam de acordo com a existência ou não do espaço público - a igualdade de todos perante a lei - colocada na primeira parte do texto.