Comentários sobre a ética rothbardiana
No começo do capítulo 8 do seu livro Ethics of Liberty, Murray Rothbard tenta estabelecer os princípios da apropriação legítima e, portanto, definir o que vem a constituir agressão.
Segundo Rothbard, há apenas três alternativas em relação ao problema dos direitos de posse sobre o próprio corpo:
"either we may lay down a rule that each man should be permitted (i.e., have the right to) the full ownership of his own body, or we may rule that he may not have such complete ownership. If he does, then we have the libertarian natural law for a free society as treated above. But if he does not, if each man is not entitled to full and 100 percent self-ownership, then what does this imply? It implies either one of two conditions: (1) the “communist” one of Universal and Equal Other-ownership, or (2) Partial Ownership of One Group by Another—a system of rule by one class over another. These are the only logical alternatives to a state of 100 percent self-ownership for all."
A segunda alternativa é descartada como sendo representativa de uma ética arbitrária e parcial. A única alternativa válida seria, portanto, a alternativa 'comunista', que defende que:
"no man is entitled to 100percent ownership of his own person. Instead, an equal part of the ownership of A’s body should be vested in B, C . . ., and the same should hold true for each of the others."
Mas segundo Rothbard, esta alternativa apresenta várias dificuldades:
In the first place, in practice, if there are more than a very few people in the society, this alternative must break down and reduce to Alternative (2), partial rule by some over others. For it is physically impossible for everyone to keep continual tabs on everyone else, and thereby to exercise his equal share of partial ownership over every other man. In practice, then, this concept of universal and equal other-ownership is Utopian and impossible, and supervision and therefore ownership of others necessarily becomes a specialized activity of a ruling class(ênfase minha). Hence, no society which does not have full self-ownership for everyone can enjoy a universal ethic(ênfase minha). For this reason alone, 100percent self-ownership for every man is the only viable political ethic for mankind(ênfase minha).
Mesmo que a alternativa fosse viável, ela não seria desejável. E por que?
"Can we picture a world in which no man is free to take any action whatsoever without prior approval by everyone else in society? Clearly no man would be able to do anything, and the human race would quickly perish. But if a world of zero or near-zero self-ownership spells death for the human race, then any steps in that direction also contravene the law of what is best for man and his life on earth. And, as we saw above, any ethic where one group is given full ownership of another violates the most elemental rule for any ethic: that it apply to every man. No partial ethics are any better, though they may seem superficially more plausible, than the theory of all- power-to-the-Hohenzollerns."
Vamos avaliar, portanto, os argumentos apresentados. Se todos os indivíduos são proprietários dos seus respectivos corpos, então eles possuem total autonomia para fazer o que quiser com eles. Mas aqui entra um problema: o indivíduo pode utilizar seu corpo para agredir outras pessoas? A maior parte dos anarco-capitalistas dirá que tal ação fere a autonomia que o outro indivíduo possui sobre o seu corpo. Só que esta é apenas metade da questão. Se por um lado a autonomia do outro indivíduo é ferida, por outro a autonomia de B é ferida ATRAVÉS do exercício da autonomia de A. O ponto é este: o indivíduo pode, através do exercício de sua autonomia, ferir a autonomia alheia. APENAS se a autonomia individual for limitada por certas regras é que esta não poderá ferir a autonomia alheia.
Não é possível defender que o indivíduo possua autonomia e que tenha uma cláusula que limita a sua autonomia sem dizer que, em certo sentido, ele possui autonomia limitada sobre si mesmo. Cada indivíduo possui, portanto, uma parte de cada um, mesmo segundo a ética rothbardiana, pois cada indivíduo pode, de maneira legítima, impedir que o outro, através do exercício de sua autonomia, agrida outra pessoa.
Este é um complemento importante ao argumento anterior: o indivíduo pode violar a autonomia alheia de tal forma a proteger a autonomia de outro indivíduo. Ou seja: é possível exercer a autonomia individual de tal forma a violar direitos, conseqüentemente o impedimento da autonomia pode protegê-los. A primeira alternativa apresentada por Rothbard, a saber, que cada um é dono legítimo do seu próprio corpo, se choca com o fato de que, na própria ética libertária, o indivíduo só pode exercer sua autonomia segundo certas regras, e que seguindo certas regras é legítimo que a autonomia individual seja limitada.Dizer que a autonomia individual é limitada de tal forma a preservar a autonomia não muda o fato de que a autonomia individual é violada. Apenas se limita a legitimidade da limitação a autonomia individual a um grupo particular de casos.Como poderíamos analisar, portanto, a ética libertária através da crítica do próprio Rothbard a solução 'comunista'?"In the first place, in practice, if there are more than a very few people in the society, this alternative must break down and reduce to Alternative (2), partial rule by some over others. For it is physically impossible for everyone to keep continual tabs on everyone else, and thereby to exercise his equal share of partial ownership over every other man."
Ou seja, Rothbard admite que tais regras só poderiam ser observadas mutuamente se houvessem poucas pessoas na sociedade."In practice, then, this concept of universal and equal other-ownership is Utopian and impossible, and supervision and therefore ownership of others necessarily becomes a specialized activity of a ruling class."Aqui Rothbard parece apontar a emergência do Estado como órgão a supervisionar a observância dessas regras."Hence, no society which does not have full self-ownership for everyone can enjoy a universal ethic. For this reason alone, 100percent self-ownership for every man is the only viable political ethic for mankind."Bem, se eu estou certo em minha crítica de que a ética libertária NÃO advoga 100% de propriedade sobre o próprio corpo, então ou Rothbard deveria descartar a ética libertária como utópica, ou admitir que o caso criticado por ele é sim compatível com uma ética universal.Quando Rothbard aponta a emergência de uma classe dominante, ele se esquece que, embora tal classe tenha, sozinha, a função de observar que as regras estão sendo cumpridas, isto não significa necessariamente que elas sejam imunes a aplicação destas mesmas regras. A existência de uma classe dominante implicaria numa ética não-universal apenas se tal classe dominante fosse imune às regras adotadas. Mas alguém pode objetar: mesmo que tais regras também se apliquem às classes dominantes, o fato de serem elas que julgam não acabaria fazendo com que, na prática, o julgamento sempre fosse em favor delas? Aqui entra a engenharia institucional e a célebre divisão dos poderes: se um poder for vigiado por outro, seria uma forma de tentar evitar com que a classe dominante aja em proveito próprio. Claro que, na prática, é possível que a engenharia institucional dê errado. Mas aqui o fracasso é contingente, e não um fracasso ontológico como parece apontar Murray Rothbard. O simples fato da engenharia institucional poder fracassar não significa que ela fracasse sempre.Por exemplo, quando julgamos se alguém é culpado ou inocente de um crime qualquer, é impossível definir, a priori, se o indivíduo é culpado ou inocente. Claro, pode-se dizer que o indivíduo é culpado se cometeu o crime, mas o ponto é justamente saber se ele cometeu o crime. Não existe nenhum procedimento que garanta a condenação de todos os culpados e a absolvição de todos os inocentes. Todo procedimento de julgamento é potencialmente falho, mas isso não quer dizer que existam procedimentos menos falhos do que outros. Seria no mínimo estranho descartar os procedimentos de julgamento simplesmente porque eles podem falhar. O mesmo se dá com a engenharia institucional da limitação de poderes.