29 de jul. de 2006

Discussões cansativas

O liberalismo é uma utopia. Explico: é uma doutrina que possui um programa e julga a realidade de acordo com a proximidade ou afastamento desse programa. Como não é um subproduto do hegelianismo, nem tampouco uma espécie de tribalismo, é essencialmente crítico de qualquer arranjo social.
Portanto, é absolutamente cansativa a discussão sobre Pinochet, Bush, Israel e afins. A questão é simples, meus amigos: o liberalismo não é pró-americano, uma postura nacionalista e coletivista. O liberal é apenas liberal. Claro, se analisarmos o anti-americanismo veremos que existe um sentimento de repulsa ao liberalismo tanto político quanto econômico. Mas daí não se deduz que tudo que os EUA fazem seja coerente com o corpo de idéias liberal. O que quero dizer com isso? Os anti-americanos acreditam que o livre comércio é apenas uma forma dos EUA possuem de explorarem outros países.
Sim, os liberais recusam essa idéia. Só não podem ser tão tolos em achar que os americanos são os grandes baluartes na defesa do livre comércio. São protecionistas em indústrias fundamentais, por exemplo. Donde não se deduz que os outros países devam fazer o mesmo para não perderem na concorrência internacioanl, pois não acreditamos na concorrência entre nações(um prelúdio da guerra) mas na interação pacífica entre indivíduos. Os liberais defendem abertura unilateral por entenderem que o livre comércio é benéfico aos países que o adotam, independente das ações adotadas por outros governos.
Se os EUA aderiram ou não, ao longo de sua história, ao livre comércio, é uma questão empírica. Os anti-americanos apontam a inconsistência da defesa do livre mercado por parte dos países ricos como prova de que a defesa da liberdade econômica é mera retórica. Isso é falacioso em vários sentidos.
O primeiro deles é que o desenvolvimento de doutrinas liberais não surgiu como razões de estado, mas sim como resultado da reflexão e investigação de pensadores interessados em saber o que tornava um país mais rico e próspero do que outro.
Ora, se os liberais estão realmente certos, a explicação para um clima mais favorável ao livre comércio entre os países mais desenvolvidos é justamente o fato de que essas políticas geram mais bem estar do que as tendências intervencionistas e dirigistas. Ou seja, os países mais desenvolvidos o são justamente por causa das doutrinas liberais que por lá reinaram, e não, como alguns querem insinuar, pelo fato de que tenham usado o livre comércio para explorarem os países menos desenvolvidos. De fato, quando os países desenvolvidos renegam o passado liberal, acabam por sofrer problemas econômicos graves. É só ver o estado de França e Alemanha hoje, por exemplo.
O segundo é que enxergam uma adesão integral daqueles países ao livre comércio, quando na verdade essa adesão é sempre parcial e dinâmica. Mesmo o país no qual o liberalismo mais floresceu no campo político, a Inglaterra, o protecionismo foi sempre uma idéia atraente e que demorou a ser derrotada.
Podemos concluir, portanto: se a doutrina do livre comércio, a saber, que o mesmo beneficia a todos, estiver correta, então a explicação para que sejam os países desenvolvidos os principais defensores dessas idéias se deve justamente ao fato de que são desenvolvidos por praticarem o livre comércio; e se defendem mas não praticam de maneira coerente a doutrina, isso é reflexo das disputas internas que existem nesses países, nos quais existe uma liberdade ampla de expressão do pensamento e a alternância entre governos acaba por indicar, muitas vezes, a alternância de políticas adotadas.
Em relação a Pinochet, por exemplo, os liberais devem esclarecer que não é o tipo de governo defendido pelos pensadores dessa corrente. Dito isso, é preciso relativizar a posição do seu governo na história. Adotou medidas liberalizantes que beneficiaram a economia chilena. Muitos se esquecem mas na mesma época Deng Xiaoping começava a introduzir na China elementos de iniciativa privada.
O que os liberais dizem a respeito? Nos dois casos, nós comemoramos. E por que? Ora, qualquer passagem para uma situação mais próxima da utopia liberal deve ser celebrada e defendida, mesmo que seja feita por não-liberais. Somos essencialmente pragmáticos: temos nossos ideais, mas não nos importamos se os nossos adversários adotam pensamentos nossos. Só não admitimos que sejam chamados de liberais, pois não defendem sistematicamente aquelas idéias.
Por fim, o ataque de Israel ao Líbano. Novamente, um liberal pode apoiar a idéia do ataque, mas não pode, de maneira alguma, apoiar a forma como foi perpetrado. Agora, se o fato já ocorreu e se coloca a questão de conflito entre Israel e o Hizbollah, apoiamos, por questões empíricas, o lado de Israel. Isso não quer dizer que abolimos a crítica, visto que temos como objetivo último a utopia liberal, e não vemos nenhum dos lados como representantes legítimos dessas idéias. Na verdade, não acreditamos que nenhum país possa, em qualquer momento da história, realizar por completo o programa liberal. Mas, novamente, ao usarmos o critério de proximidade ou afastamento da nossa utopia, o lado israelense está mais próximo daquilo que defendemos.
O liberal é um pragmático no sentido de tomar posições possíveis no palco da história, mas é essencialmente idealista na formulação de seu programa. O liberalismo que jogue no lixo essa formulação utópica torna-se refém da maré dos fatos, e acaba por adotar posturas essencialmente anti-liberais, quando na verdade sua aproximação com a realidade deveria ser sempre crítica.

26 de jul. de 2006

Notas sobre mercado de trabalho


*o mercado funciona sempre dentro de um arcabouço institucional. Mesmo num direito impessoal como o ocidental, existem restrições.
*Por exemplo, a limitação da idade mínima e máxima para que uma pessoa possa ser contratada.
*Há ainda exigências corporativas. Para ser advogado, é preciso ser formado em Direito e passar no exame da OAB. Só pessoas formadas em ciências contábeis podem trabalhar como contadores. Apesar de ser uma exigência impessoal, é uma limitação estrutural, que gera determinados incentivos para quem está no mercado de trabalho.


*Em certo sentido, a formação é um sinal da capacidade do empregado, visto que o empregador não possui conhecimento perfeito de toda a realidade. Logicamente, o sinal é dinâmico: a qualidade passada dos profissionais forma uma reputação que se projeta para o futuro.


*A dinâmica do processo se dá pelo mecanismo de competição: as empresas priorizam pessoas com determinada formação, mas nem todas conseguem aqueles profissionais. Se empregados menos gabaritados se mostrarem eficientes, isso se refletirá no sucesso da empresa no mercado, e esse sucesso modificará o sinal.

*Há ainda as empresas ou indivíduos que buscam fazer algo absolutamente diferente. Quanto maior o risco, maior a oportunidade de lucro.

*O arcabouço institucional pode ser prejudicial de duas formas: retira o dinamismo do sinal ao restringir o universo possível de contratações, e inibe os indivíduos que querem correr riscos.

25 de jul. de 2006

O debate público

Às vezes me pergunto porque as pessoas procuram se informar quando, no final, a conclusão é quase sempre "ninguém presta" ou de que precisamos de "gente ética". Sério, um discurso mais articulado não faz mal a ninguém.
Digo isso porque quase toda medida governamental possui aprovação do público. Parece que ainda subsiste um sentimento de que "é preciso fazer alguma coisa" e, portanto, "vale qualquer iniciativa". No debate das cotas raciais, por exemplo, uma das respostas dada pelos "intelectuais" contra o primeiro manifesto, asssinado por outros "intelectuais" opositores ao projeto, é que estes só criticavam e não tinham propostas. Como se toda proposição de lei fosse mais positiva do que não se propor lei alguma. Não se pensa que toda ação possui um custo, e a ação do governo também.
Princípios não são discutidos, apenas a razoabilidade da proposta. Na sua análise do sistema judiciário americano, Hayek já tinha chamado a atenção para a substituição gradual da idéia de fazer cumprir a lei pela suposição de que os juízes devem simplesmente julgar se as ações dos governos são "razoáveis" ou não. Não se discute a própria idéia das cotas, mas sim sua aplicabilidade. No caso brasileiro, a situação, muitas vezes, é ainda mais grave: até mesmo a razoabilidade é substituída pelo discurso meramente emotivo, não como último recurso(no calor do debate, a emoção sempre aflora, não tem jeito)mas mesmo como primeiro.
E ainda existe a terrível figura do "especialista". Seja sociólogo, cientista político, historiador, médico, economista. Não que suas atividades sejam, em si, condenáveis, mas seus julgamentos acabam ganhando autoridade exagerada no debate público. Veja, um médico pode nos dizer que, segundo pesquisas, fumar provoca uma série de problemas. Mas daí não se tira que as pessoas devam ser proibidas de fumar. Logicamente, um médico deverá ser consultado se existe, dentre as atividades previstas do governo, a intervenção na área de saúde. Só que a preocupação aqui, novamente, não é com princípios, e sim em ter embasamento técnico na hora de intervir.
Weber previa uma intensa burocratização na sociedade moderna, pois a mesma deixava de ter um único princípio fundador, a razão religiosa, e as esferas da ação humana ganhavam autonomia. Dessa forma, cada atividade, dentro de sua razão de ser, passaria a se achar o princípio organizador da sociedade. Existiria uma ciência do direito, cujas considerações seriam distintas da atividade médica, que poderia contrariar a lógica econômica.
O ponto paradoxal de tudo isso é que essa burocratização social só se torna possível devido ao respaldo jurídico da iniciativa individual. O indivíduo age de acordo com seus cálculos de custo x benefício(razão instrumental) e seus desejos não devem ser, de forma alguma, desconsiderados. Ao mesmo tempo, a burocracia pode se desenvolver de tal forma a tornar inviável até mesmo essa iniciativa do indivíduo: este precisa considerar tantos aspectos distintos para agir que acaba não sendo possível que ele decida por si mesmo; é o Estado que regula a forma como as pessoas levam suas vidas, sem que, no entanto, decida o que deve motivá-as.
O espaço público não seria abusivo. O Estado burocrático pressupõe, e só pode sobreviver, se fundado em princípios democráticos, ou seja, devem ser consideradas todas as esferas. Pode-se questionar, no entanto, qual o caráter dessa democracia: não é a democracia liberal, que limita a intervenção do Estado de modo que a mesma não fira a liberdade individual; tampouco é a democracia irrestrita, que se deixa levar ao sabor da opinião pública. É muito mais uma tecnocracia, cujas decisões e deliberações a serem tomadas são consideradas tão complexas que devem ser "blindadas" à discussão pública(pode-se questionar até que ponto a discussão atual de que as políticas econômicas sejam independentes do processo democrático não seria um sintoma dessa tecnocracia). É diferente também da democracia liberal, visto que essa guia a ação do Estado através de princípios fundamentais; já no exemplo citado, não existem princípios, mas apenas "questões de ordem técnica".
Talvez aqui se enconte a resposta capaz de analisar melhor o julgamento hayekiano desenvolvido a partir do "Caminho da Servidão": a tese de que, para implantar o socialismo, seria necessário utilizar meios que os próprios socialistas rejeitam. Historicamente podemos perceber isso: as experiências socialistas foram tentadas em lugares nos quais o respeito pelo indivíduo era frágil e vacilante, não exatamente naqueles em que a militância e o pensamento socialista eram mais desenvolvidos e organizados.
O que aconteceu, exatamente, na Europa? Sim, é verdade que, logo após a guerra, foi implantado um sistema altamente intervencionista, e que Hayek via, na Inglaterra, a chance de surgir um Estado Socialista. Os defensores da socialdemocracia riem das previsões de Hayek, talvez o considerem como uma espécie de Marx do liberalismo. Esses defensores, no entanto, se esquecem que o socialismo democrático era muito mais um método do que um regime pretendido. A idéia era alcançar o socialismo através da democracia. Não se pretendia, e nem se imaginava, um socialismo democrático, pois a própria idéia de um socialismo autoritário não era considerada. Considerações para manter um regime democrático no estágio socialista eram vistas como ridículas: no socialismo, a própria questão da democracia não mais se colocava.
A verdade, pura e simples, é que o programa do partido trabalhista inglês era sim um perigo. E esse perigo só foi afastado pela tradição liberal, tão cara aos ingleses, mesmo entre aqueles que se diziam socialistas, e pelo desejo sincero em manter a democracia manifestado por muitos trabalhistas, apesar do discurso teórico levar a um resultado completamente distinto.
Qual foi o regime implementado na Inglaterra, então? Parece-me que, com o tempo, os comunistas e socialistas ficaram afastados cada vez mais do espectro político relevante, não só na Inglaterra como na europa ocidental não ibérica, pois as suas sugestões ou eram deslegitimadas pelas experiências socialistas fora da Europa(e o stalinismo teve um impacto até mesmo entre os comunistas, principalmente os italianos), ou encontravam forte oposição da opinião pública quando da tentativa de aplicá-los. O que se viu, então, foi a implementação de um estado tecnocrático muito poderoso que, se por um lado respeitava a iniciativa individual, por outro estabelecia uma série de restrições legais que visavam muito mais o controle do que propriamente a proibição. De fato, a proibição era subproduto do controle.
Essa situação gerou até mesmo um fenômeno novo: os socialistas e comunistas, em seu constante ataque à sociedade capitalista, aderiram a causas que inicialmente não constavam em seus programas. Por exemplo, a defesa dos homossexuais, dos imigrantes, da pornografia, do uso de entorpecentes proibidos, sem contar a crítica ao controle tecnocrático da mídia, a propaganda oficial de estilos de vida e defesa do governo. Curiosamente, a crítica interna ao capitalismo acabou inspirando o questionamento externo das experiências socialistas mundo afora. Já não se questionava o abuso de poder e os desvios da experiência socialista, velha crítica já internalizada pela esquerda. Até mesmo as bases do socialismo, a velha luta de classes, perdia espaço. Os objetivos de um governo socialista passavam a ser outros. Claro, eu estou simplificando o debate em demasia. Nessa época, as ilusões maoístas ainda eram vistas como sinais de renovação.
O que me parece mais significativo nesse quadro é que a esquerda, apesar de ter aderido, por motivos históricos, a causas libertárias(e isso não é nenhum demérito: os liberais, por exemplo, só aderiram ao sufrágio universal por motivos históricos), não conseguiu produzir uma crítica contundente do Estado tecnocrático. Ao contrário, se utiliza do mesmo para impor suas causas. Os meios são conhecidos: "educar" as pessoas, criar "espaços públicos" para manifestações alternativas. O problema nisso tudo é que os pensadores mais contundentes, em sua crítica constante ao capitalismo, rejeitam teoricamente esses paliativos(apesar de abençoá-los quando colocados em prática), isolando a crítica libertária da esquerda ao limbo, e junto com ela as causas defendidas. Explico melhor: como a esquerda defende causas liberalizantes sem questionar o estado tecnocrático, um governo socialdemocrata acaba sendo uma variação de um governo tecnocrático, e os socialistas mais coerentes, ao perceber o quadro, denunciam os atos socialdemocratas, colocando-se, no entanto, em isolamento quase completo no espectro político. Ao invés de denunciar a crítica à tecnocracia como necessária e resgatar os modernos socialdemocratas de sua letargia programática, denunciam a falha da socialdemocracia em conseguir seus resultados como prova de que somente uma revolução socialista pode realmente modificar a sociedade. Já que o socialismo é visto como impossível, ao menos por enquanto, os socialistas de vertente "realista" apóiam a variate socialtecnocracia, sem o empenho de lutar por mudanças drásticas.