25 de jul. de 2006

O debate público

Às vezes me pergunto porque as pessoas procuram se informar quando, no final, a conclusão é quase sempre "ninguém presta" ou de que precisamos de "gente ética". Sério, um discurso mais articulado não faz mal a ninguém.
Digo isso porque quase toda medida governamental possui aprovação do público. Parece que ainda subsiste um sentimento de que "é preciso fazer alguma coisa" e, portanto, "vale qualquer iniciativa". No debate das cotas raciais, por exemplo, uma das respostas dada pelos "intelectuais" contra o primeiro manifesto, asssinado por outros "intelectuais" opositores ao projeto, é que estes só criticavam e não tinham propostas. Como se toda proposição de lei fosse mais positiva do que não se propor lei alguma. Não se pensa que toda ação possui um custo, e a ação do governo também.
Princípios não são discutidos, apenas a razoabilidade da proposta. Na sua análise do sistema judiciário americano, Hayek já tinha chamado a atenção para a substituição gradual da idéia de fazer cumprir a lei pela suposição de que os juízes devem simplesmente julgar se as ações dos governos são "razoáveis" ou não. Não se discute a própria idéia das cotas, mas sim sua aplicabilidade. No caso brasileiro, a situação, muitas vezes, é ainda mais grave: até mesmo a razoabilidade é substituída pelo discurso meramente emotivo, não como último recurso(no calor do debate, a emoção sempre aflora, não tem jeito)mas mesmo como primeiro.
E ainda existe a terrível figura do "especialista". Seja sociólogo, cientista político, historiador, médico, economista. Não que suas atividades sejam, em si, condenáveis, mas seus julgamentos acabam ganhando autoridade exagerada no debate público. Veja, um médico pode nos dizer que, segundo pesquisas, fumar provoca uma série de problemas. Mas daí não se tira que as pessoas devam ser proibidas de fumar. Logicamente, um médico deverá ser consultado se existe, dentre as atividades previstas do governo, a intervenção na área de saúde. Só que a preocupação aqui, novamente, não é com princípios, e sim em ter embasamento técnico na hora de intervir.
Weber previa uma intensa burocratização na sociedade moderna, pois a mesma deixava de ter um único princípio fundador, a razão religiosa, e as esferas da ação humana ganhavam autonomia. Dessa forma, cada atividade, dentro de sua razão de ser, passaria a se achar o princípio organizador da sociedade. Existiria uma ciência do direito, cujas considerações seriam distintas da atividade médica, que poderia contrariar a lógica econômica.
O ponto paradoxal de tudo isso é que essa burocratização social só se torna possível devido ao respaldo jurídico da iniciativa individual. O indivíduo age de acordo com seus cálculos de custo x benefício(razão instrumental) e seus desejos não devem ser, de forma alguma, desconsiderados. Ao mesmo tempo, a burocracia pode se desenvolver de tal forma a tornar inviável até mesmo essa iniciativa do indivíduo: este precisa considerar tantos aspectos distintos para agir que acaba não sendo possível que ele decida por si mesmo; é o Estado que regula a forma como as pessoas levam suas vidas, sem que, no entanto, decida o que deve motivá-as.
O espaço público não seria abusivo. O Estado burocrático pressupõe, e só pode sobreviver, se fundado em princípios democráticos, ou seja, devem ser consideradas todas as esferas. Pode-se questionar, no entanto, qual o caráter dessa democracia: não é a democracia liberal, que limita a intervenção do Estado de modo que a mesma não fira a liberdade individual; tampouco é a democracia irrestrita, que se deixa levar ao sabor da opinião pública. É muito mais uma tecnocracia, cujas decisões e deliberações a serem tomadas são consideradas tão complexas que devem ser "blindadas" à discussão pública(pode-se questionar até que ponto a discussão atual de que as políticas econômicas sejam independentes do processo democrático não seria um sintoma dessa tecnocracia). É diferente também da democracia liberal, visto que essa guia a ação do Estado através de princípios fundamentais; já no exemplo citado, não existem princípios, mas apenas "questões de ordem técnica".
Talvez aqui se enconte a resposta capaz de analisar melhor o julgamento hayekiano desenvolvido a partir do "Caminho da Servidão": a tese de que, para implantar o socialismo, seria necessário utilizar meios que os próprios socialistas rejeitam. Historicamente podemos perceber isso: as experiências socialistas foram tentadas em lugares nos quais o respeito pelo indivíduo era frágil e vacilante, não exatamente naqueles em que a militância e o pensamento socialista eram mais desenvolvidos e organizados.
O que aconteceu, exatamente, na Europa? Sim, é verdade que, logo após a guerra, foi implantado um sistema altamente intervencionista, e que Hayek via, na Inglaterra, a chance de surgir um Estado Socialista. Os defensores da socialdemocracia riem das previsões de Hayek, talvez o considerem como uma espécie de Marx do liberalismo. Esses defensores, no entanto, se esquecem que o socialismo democrático era muito mais um método do que um regime pretendido. A idéia era alcançar o socialismo através da democracia. Não se pretendia, e nem se imaginava, um socialismo democrático, pois a própria idéia de um socialismo autoritário não era considerada. Considerações para manter um regime democrático no estágio socialista eram vistas como ridículas: no socialismo, a própria questão da democracia não mais se colocava.
A verdade, pura e simples, é que o programa do partido trabalhista inglês era sim um perigo. E esse perigo só foi afastado pela tradição liberal, tão cara aos ingleses, mesmo entre aqueles que se diziam socialistas, e pelo desejo sincero em manter a democracia manifestado por muitos trabalhistas, apesar do discurso teórico levar a um resultado completamente distinto.
Qual foi o regime implementado na Inglaterra, então? Parece-me que, com o tempo, os comunistas e socialistas ficaram afastados cada vez mais do espectro político relevante, não só na Inglaterra como na europa ocidental não ibérica, pois as suas sugestões ou eram deslegitimadas pelas experiências socialistas fora da Europa(e o stalinismo teve um impacto até mesmo entre os comunistas, principalmente os italianos), ou encontravam forte oposição da opinião pública quando da tentativa de aplicá-los. O que se viu, então, foi a implementação de um estado tecnocrático muito poderoso que, se por um lado respeitava a iniciativa individual, por outro estabelecia uma série de restrições legais que visavam muito mais o controle do que propriamente a proibição. De fato, a proibição era subproduto do controle.
Essa situação gerou até mesmo um fenômeno novo: os socialistas e comunistas, em seu constante ataque à sociedade capitalista, aderiram a causas que inicialmente não constavam em seus programas. Por exemplo, a defesa dos homossexuais, dos imigrantes, da pornografia, do uso de entorpecentes proibidos, sem contar a crítica ao controle tecnocrático da mídia, a propaganda oficial de estilos de vida e defesa do governo. Curiosamente, a crítica interna ao capitalismo acabou inspirando o questionamento externo das experiências socialistas mundo afora. Já não se questionava o abuso de poder e os desvios da experiência socialista, velha crítica já internalizada pela esquerda. Até mesmo as bases do socialismo, a velha luta de classes, perdia espaço. Os objetivos de um governo socialista passavam a ser outros. Claro, eu estou simplificando o debate em demasia. Nessa época, as ilusões maoístas ainda eram vistas como sinais de renovação.
O que me parece mais significativo nesse quadro é que a esquerda, apesar de ter aderido, por motivos históricos, a causas libertárias(e isso não é nenhum demérito: os liberais, por exemplo, só aderiram ao sufrágio universal por motivos históricos), não conseguiu produzir uma crítica contundente do Estado tecnocrático. Ao contrário, se utiliza do mesmo para impor suas causas. Os meios são conhecidos: "educar" as pessoas, criar "espaços públicos" para manifestações alternativas. O problema nisso tudo é que os pensadores mais contundentes, em sua crítica constante ao capitalismo, rejeitam teoricamente esses paliativos(apesar de abençoá-los quando colocados em prática), isolando a crítica libertária da esquerda ao limbo, e junto com ela as causas defendidas. Explico melhor: como a esquerda defende causas liberalizantes sem questionar o estado tecnocrático, um governo socialdemocrata acaba sendo uma variação de um governo tecnocrático, e os socialistas mais coerentes, ao perceber o quadro, denunciam os atos socialdemocratas, colocando-se, no entanto, em isolamento quase completo no espectro político. Ao invés de denunciar a crítica à tecnocracia como necessária e resgatar os modernos socialdemocratas de sua letargia programática, denunciam a falha da socialdemocracia em conseguir seus resultados como prova de que somente uma revolução socialista pode realmente modificar a sociedade. Já que o socialismo é visto como impossível, ao menos por enquanto, os socialistas de vertente "realista" apóiam a variate socialtecnocracia, sem o empenho de lutar por mudanças drásticas.

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