Estou devendo ao Richard uma resposta a dois artigos dele sobre anarco-capitalismo, mas como estou meio sem tempo no momento para terminar de escrever a resposta(da qual já tenho um esboço, mas que penso em trabalhar mais em cima dele), resolvi escrever primeiro uma resposta ao seu mais recente artigo, que por sua vez é uma resposta a um comentário feito no seu blog: "seria válido um sujeito A invadir a propriedade de D, para impedir que B mate C?".
Esta versão do problema é interessante, mas consigo pensar em outra, que comentarei mais adiante. O texto é curto, portanto vou comentá-lo quase que integralmente. Quem quiser lê-lo por completo pode acessar este link. O primeiro argumento apresentado é o seguinte:
"Acho que de um ponto de vista liberal, a resposta correta é não, a propriedade de D não pode ser invadida. Imagine que seja legitimo A invadir as propriedades de D. Isso só significaria que D na verdade não é proprietário do bem invadido, o que contraria o fato dele ser na realidade dono de tal bem (a hipótese inicial). Ser proprietário de um bem significa ter total controle e disposição sobre esse bem. Se A pode (normativamente), legitimamente, sobrepor a vontade de D na alocação do bem, então seria A o proprietário, não D. Ainda dentro da questão proposta, D por hipótese é o proprietário do bem, isso significa que de alguma forma é possível rastrear o bem até a sua “produção original”, ou seja, à “apropriação lockeana” de recursos naturais e o trabalho do produtor do bem. Após essa apropriação original, numa sucessiva rodada de trocas entre proprietários originais (o número das rodadas pode ser de 0, se D é o produtor original ou recebeu de presente, a algum N finito), o bem foi parar nas mãos de D."
Vamos por partes. Richard afirma que "ser proprietário de um bem significa ter total controle e disposição sobre esse bem". Mas será mesmo? Se eu sou proprietário de um revólver, eu posso controlá-lo e utilizá-lo da maneira que eu bem entender? Creio que não, pois eu não posso deliberadamente atirar em alguém sem nenhuma razão. O fato de que eu não posso dispor de qualquer forma do revólver não revoga a minha propriedade sobre o mesmo.
Mais adiante, Richard continua:
"Se for assumido que A pode legitimamente invadir a propriedade de D, e dado que propriedade significa total controle e disposição, o que significa inclusive trocar o bem, então a apropriação lockeana, a apropriação original do bem, deve ser ilegítima, o que, além de violar a concepção liberal, é também uma contradição lógica, já que não seria possível argumentar sobre a não validade da apropriação lockeana sem a apropriação lockeana ser assumida como válida."
A apropriação lockeana não precisa ser ilegítima, pois a legitimidade para A invadir a propriedade de D não se refere a critérios legítimos de apropriação, mas sim a critérios legítimos de desapropriação. Seria preciso discutir, aqui, quais são os critérios legítimos de desapropriação, tanto permanente quanto temporária.
E não é preciso assumir a apropriação lockeana como válida para poder se argumentar, como bem observou David Friedman neste texto.
Em outro momento, é dito que:
"Agora, mudemos um pouco o foco da análise. A tendência, sem dúvida nenhuma, é a pergunta ser respondida com um sim e a razão disso é que salvar vidas é algo considerado extremamente benéfico. Mas se podemos salvar vidas, violando direitos alheios, porque não podemos fazer outras coisas extremamente benéficas, violando direitos alheios? Uma pessoa que não coma, perderá também sua vida, porque não obrigar, via força, terceiros a darem comida para o faminto? Alguém que não estuda, terá “poucas oportunidades”, pode cair na criminalidade e morrer. Porque não dar então escola, mesmo financiadas via força, a essas pessoas? Ou seja, aceitando o principio inicial, “fazer o bem, mesmo violando direitos”, temos o caminho da servidão aberto e pavimentado."
Este é um tipo de argumento que não esclarece muito. Como já disse antes, a questão aqui são os critérios de desapropriação, permanente ou momentânea. Além disso, simplesmente não é verdade que, por se defender que, em certos momentos, a propriedade possa ser suspensa, se deva defender todo e qualquer tipo de suspensão. A suspensão da propriedade pode ser feita de modo a obedecer critérios. Se esses critérios são válidos ou não, é uma outra história. Mas dizer que o estabelecimento de critérios para desapropriação é inerentemente arbitrário(ou mesmo ilógico) é ir longe demais. Concordo que 'fazer o bem, mesmo violando direitos' é sim um caminho arbitrário, mas a nossa discussão a respeito da demarcação dos direitos no remete a critérios que utilizamos para demarcá-los, e no momento em que demarcamos os direitos vinculados a determinadas regras, os procedimentos a serem seguidos deixam de ser arbitrários. O que não significa que sejam necessariamente corretos.
O autor conclui o texto, escrevendo:
"Mas voltando ao principio propriamente dito, a idéia de que um indivíduo pode ser sacrificado, ter direitos violados, em nome do bem de outro individuo ou da sociedade (vários outros indivíduos) é a negação completa do que significa um individuo: uma entidade consciente, com propósito, independente das demais, única e soberana – self-ownership, uma entidade que tem total jurisdição sobre si mesmo e demais recursos obtidos através e apartir da “apropriação lockeana”, o que exclui logicamente qualquer soberania e jurisdição sobre outra entidade de igual natureza – consciente e “propositada”. Se algum indivíduo tem, a priori, uma reclamação legitima de sacrifício por parte de outro indivíduo, isso só significa que a auto-propriedade (self-ownership) do segundo não é válida, significa que o segundo é um escravo do primeiro, o que viola a natureza dessa entidade e a concepção liberal de direitos e justiça. Racionalmente e logicamente é um completo absurdo, uma contradição tanto quanto a não validade da apropriação lockeana (ver os mesmos textos indicados do Hoppe, principalmente os dois primeiros)."
Será que podemos afirmar tanto assim? Ter direitos violados não é o mesmo que ser sacrificado. Podemos pensar em regras e procedimentos derivados da demarcação de certos direitos, por exemplo sua suspensão momentânea em tais e tais casos(não é meu objetivo aqui discorrer sobre a correção de tal argumentação, o meu ponto é que ela não é inerentemente incorreta). Até porque dizer que "se algum indivíduo tem, a priori, uma reclamação legitima de sacrifício por parte de outro indivíduo, isso só significa que a auto-propriedade (self-ownership) do segundo não é válida, significa que o segundo é um escravo do primeiro, o que viola a natureza dessa entidade e a concepção liberal de direitos e justiça" não faz muito sentido quando tal reclamação legítima é mútua.
update: esqueci de comentar uma outra forma de colocar o problema. Pode A invadir a propriedade de B para evitar que B mate C? Neste caso, seria válido garantir os direitos de propriedade de B(ou seja, não exigir uma suspensão momentânea dos mesmos) de tal modo que B mate C?
Esta versão do problema é interessante, mas consigo pensar em outra, que comentarei mais adiante. O texto é curto, portanto vou comentá-lo quase que integralmente. Quem quiser lê-lo por completo pode acessar este link. O primeiro argumento apresentado é o seguinte:
"Acho que de um ponto de vista liberal, a resposta correta é não, a propriedade de D não pode ser invadida. Imagine que seja legitimo A invadir as propriedades de D. Isso só significaria que D na verdade não é proprietário do bem invadido, o que contraria o fato dele ser na realidade dono de tal bem (a hipótese inicial). Ser proprietário de um bem significa ter total controle e disposição sobre esse bem. Se A pode (normativamente), legitimamente, sobrepor a vontade de D na alocação do bem, então seria A o proprietário, não D. Ainda dentro da questão proposta, D por hipótese é o proprietário do bem, isso significa que de alguma forma é possível rastrear o bem até a sua “produção original”, ou seja, à “apropriação lockeana” de recursos naturais e o trabalho do produtor do bem. Após essa apropriação original, numa sucessiva rodada de trocas entre proprietários originais (o número das rodadas pode ser de 0, se D é o produtor original ou recebeu de presente, a algum N finito), o bem foi parar nas mãos de D."
Vamos por partes. Richard afirma que "ser proprietário de um bem significa ter total controle e disposição sobre esse bem". Mas será mesmo? Se eu sou proprietário de um revólver, eu posso controlá-lo e utilizá-lo da maneira que eu bem entender? Creio que não, pois eu não posso deliberadamente atirar em alguém sem nenhuma razão. O fato de que eu não posso dispor de qualquer forma do revólver não revoga a minha propriedade sobre o mesmo.
Mais adiante, Richard continua:
"Se for assumido que A pode legitimamente invadir a propriedade de D, e dado que propriedade significa total controle e disposição, o que significa inclusive trocar o bem, então a apropriação lockeana, a apropriação original do bem, deve ser ilegítima, o que, além de violar a concepção liberal, é também uma contradição lógica, já que não seria possível argumentar sobre a não validade da apropriação lockeana sem a apropriação lockeana ser assumida como válida."
A apropriação lockeana não precisa ser ilegítima, pois a legitimidade para A invadir a propriedade de D não se refere a critérios legítimos de apropriação, mas sim a critérios legítimos de desapropriação. Seria preciso discutir, aqui, quais são os critérios legítimos de desapropriação, tanto permanente quanto temporária.
E não é preciso assumir a apropriação lockeana como válida para poder se argumentar, como bem observou David Friedman neste texto.
Em outro momento, é dito que:
"Agora, mudemos um pouco o foco da análise. A tendência, sem dúvida nenhuma, é a pergunta ser respondida com um sim e a razão disso é que salvar vidas é algo considerado extremamente benéfico. Mas se podemos salvar vidas, violando direitos alheios, porque não podemos fazer outras coisas extremamente benéficas, violando direitos alheios? Uma pessoa que não coma, perderá também sua vida, porque não obrigar, via força, terceiros a darem comida para o faminto? Alguém que não estuda, terá “poucas oportunidades”, pode cair na criminalidade e morrer. Porque não dar então escola, mesmo financiadas via força, a essas pessoas? Ou seja, aceitando o principio inicial, “fazer o bem, mesmo violando direitos”, temos o caminho da servidão aberto e pavimentado."
Este é um tipo de argumento que não esclarece muito. Como já disse antes, a questão aqui são os critérios de desapropriação, permanente ou momentânea. Além disso, simplesmente não é verdade que, por se defender que, em certos momentos, a propriedade possa ser suspensa, se deva defender todo e qualquer tipo de suspensão. A suspensão da propriedade pode ser feita de modo a obedecer critérios. Se esses critérios são válidos ou não, é uma outra história. Mas dizer que o estabelecimento de critérios para desapropriação é inerentemente arbitrário(ou mesmo ilógico) é ir longe demais. Concordo que 'fazer o bem, mesmo violando direitos' é sim um caminho arbitrário, mas a nossa discussão a respeito da demarcação dos direitos no remete a critérios que utilizamos para demarcá-los, e no momento em que demarcamos os direitos vinculados a determinadas regras, os procedimentos a serem seguidos deixam de ser arbitrários. O que não significa que sejam necessariamente corretos.
O autor conclui o texto, escrevendo:
"Mas voltando ao principio propriamente dito, a idéia de que um indivíduo pode ser sacrificado, ter direitos violados, em nome do bem de outro individuo ou da sociedade (vários outros indivíduos) é a negação completa do que significa um individuo: uma entidade consciente, com propósito, independente das demais, única e soberana – self-ownership, uma entidade que tem total jurisdição sobre si mesmo e demais recursos obtidos através e apartir da “apropriação lockeana”, o que exclui logicamente qualquer soberania e jurisdição sobre outra entidade de igual natureza – consciente e “propositada”. Se algum indivíduo tem, a priori, uma reclamação legitima de sacrifício por parte de outro indivíduo, isso só significa que a auto-propriedade (self-ownership) do segundo não é válida, significa que o segundo é um escravo do primeiro, o que viola a natureza dessa entidade e a concepção liberal de direitos e justiça. Racionalmente e logicamente é um completo absurdo, uma contradição tanto quanto a não validade da apropriação lockeana (ver os mesmos textos indicados do Hoppe, principalmente os dois primeiros)."
Será que podemos afirmar tanto assim? Ter direitos violados não é o mesmo que ser sacrificado. Podemos pensar em regras e procedimentos derivados da demarcação de certos direitos, por exemplo sua suspensão momentânea em tais e tais casos(não é meu objetivo aqui discorrer sobre a correção de tal argumentação, o meu ponto é que ela não é inerentemente incorreta). Até porque dizer que "se algum indivíduo tem, a priori, uma reclamação legitima de sacrifício por parte de outro indivíduo, isso só significa que a auto-propriedade (self-ownership) do segundo não é válida, significa que o segundo é um escravo do primeiro, o que viola a natureza dessa entidade e a concepção liberal de direitos e justiça" não faz muito sentido quando tal reclamação legítima é mútua.
update: esqueci de comentar uma outra forma de colocar o problema. Pode A invadir a propriedade de B para evitar que B mate C? Neste caso, seria válido garantir os direitos de propriedade de B(ou seja, não exigir uma suspensão momentânea dos mesmos) de tal modo que B mate C?
2 comentários:
Belo debate interblogs. O seu "update" é uma boa questão também.
Espero avidamente pelos próximos comentários.
Renato, respondi aqui: https://www.blogger.com/comment.g?blogID=2574751593180084250&postID=5081016750627411265&isPopup=true
Valeu pelo "texto-pergunta"
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