12 de jul. de 2006

EMIR SADER MENTE

Sempre que eu leio um texto, tenho por hábito dar ao autor do mesmo o benefício da dúvida: se ele diz alguma bobagem, é um erro honesto; a honestidade não deve entrar em questão, até porque não tenho como saber a respeito da personalidade de quem expressa aquelas idéias.
Por isso fiquei tão chocado com o ocorrido nessa terça feira. No recém criado blog de Emir Sader no portal Carta Maior, o professor da UERJ publicou um texto intitulado "Zizek contra Bill Gates". Na chamada do site, lemos:

"A revista "The Economist" o colocou na capa, a cabocla "Veja" seguiu a mesma linha e fez matéria sobre a “generosidade” de Bill Gates e outros bilionários que doam uma parte das suas fortunas. Conheça o que o ensaísta Slavoj Zizek chama de liberal-comunistas(...)"
Realmente, as doações feitas por bilionários vem chamando bastante a atenção do público. E Zizek é, para quem não sabe, o último sopro de originalidade do marxismo militante. Sua principal tese é a seguinte: a esquerda "realista", ao ceder à economia de mercado pretendendo reformar o sistema por dentro, acaba por sendo a principal propagandista do capitalismo. Mas, ao contrário de outros radicais de esquerda, ele não diz que esses "progressistas pró-capital" sejam traidores do movimento ou que tenham cedido a desejos egoístas e pulado o muro ideológico. Eles foram, na verdade, seduzidos pelo discurso pró-diversidade, a favor da igualdade racial, anti-homofóbico e internacionalista que o capitalismo globalista abraça com tanto prazer. Zizek, na verdade, não se pretende original.
Ele admite que sua tese de "fusionismo"entre a esquerda liberal e o capitalismo internacional, que valoriza a individualidade acima de tudo(afinal, é a defesa do indivíduo que sustenta a idéia de igualdade entre as raças, o sexo livre, o respeito ao "diferente"; todos colocam o capitalismo "pra rodar")já foi há muito diagnosticada pelos conservadores americanos de vertente isolacionista.
Para estes, o estilo americano de vida estaria sendo corroído pela presença de imigrantes, pela mídia imoral, pelo homossexualismo militante, por religiões não-cristãs, por interesses corporativos que incentivam a migração de empregos americanos para países com mão de obra mais barata, pela liberação do aborto, disseminação do sexo livre, pornografia, etc. Enfim, a lista é enorme e fartamente documentada. Quem quiser ver a relação entre esses grupos consideradors "extremistas" pelos conservadores e as grandes corporações, é só fazer uma pequena pesquisa.
Mas a maior parte dos leitores de Carta Maior, ou ao menos desse post, não devem conhecer essa tese. Passo a analisar, portanto, o que Emir escreveu. Francamente, eu nem sei por onde começar; Sader não esclarece se o texto publicado é um resumo que ele fez do artigo de Zizek, uma tradução do original, ou uma mistura dos dois. Começa assim:

"O ensaísta esloveno Slavoj Zizek os chama de “liberal comunistas” – incluindo na mesma categoria também a George Soros, aos executivos de Google, da IBM, de Intel, entre outros – que têm no editorialista do New York Times, Thomas Friedman, um dos seus escribas de plantão. A palavra chave desses tipos é smart. 'Ser smart, é ser dinâmico e nômade, inimigo da burocracia centralizada; acreditar no diálogo e na cooperação contra a autoridade central; apostar na flexibilidade contra a rotina; na cultura e no saber contra a produção industrial; privilegiar as trocas espontâneas e a autopoïese (a capacidade de um sistema de se auto-engendrar) contra as hierarquias rígidas.' "
E termina: "Na oposição entre essas duas caras – smart e non smart -, a idéia mestra é a de deslocalizar, exportando a face escondida (e indispensável) da produção para os paises da periferia – non smart -, com a super-exploração e a degradação do meio ambiente.

Assim Zizek se opõe a Bill Bates e os seus “liberais-comunistas”.

(O artigo original foi publicado pela London Review of Books.)"

Tudo muito estranho, não acham? O artigo original, pelo que podemos entender pela citação do nome de Zizek no início e no fim do texto, não foi traduzido por Emir. Não faz muito sentido, portanto, informar onde o artigo "original" foi publicado, já que não foi apresentada nenhuma tradução. A maioria dos leitores, no entanto, é levada a imaginar que leu um resumo fiel do texto de Zizek.

Curioso que sou, e devo revelar também que, apesar das bobagens econômicas que profere, considero Zizek um pensador perspicaz quando a questão é analisar relações políticas, fui atrás do artigo original. "Mas Renato", alguns podem dizer,"não há link para o artigo, não deve ter na internet". Infelizmente, a vida não é tão bonita assim. Abram o Google. Digitem "London Review of Books". Cliquem no primeiro link. Apertem search. Digitem o nome Zizek em "contributor". Agora selecionem "Nobody has to be vile". Pronto! Eis que aparece o artigo de Zizek que Sader pretendeu resumir. A fonte não é obscura, existe na internet e a data é até mesmo relativamente antiga: 6 de abril de 2006. E o que diz Zizek, afinal? Bem, o artigo começa assim:

"Since 2001, Davos and Porto Alegre have been the twin cities of globalisation: Davos, the exclusive Swiss resort where the global elite of managers, statesmen and media personalities meets for the World Economic Forum under heavy police protection, trying to convince us (and themselves) that globalisation is its own best remedy; Porto Alegre, the subtropical Brazilian city where the counter-elite of the anti-globalisation movement meets, trying to convince us (and themselves) that capitalist globalisation is not our inevitable fate – that, as the official slogan puts it, ‘another world is possible.’ It seems, however, that the Porto Alegre reunions have somehow lost their impetus – we have heard less and less about them over the past couple of years. Where did the bright stars of Porto Alegre go?"
Ahn?
E termina:

"Etienne Balibar, in La Crainte des masses (1997), distinguishes the two opposite but complementary modes of excessive violence in today’s capitalism: the objective (structural) violence that is inherent in the social conditions of global capitalism (the automatic creation of excluded and dispensable individuals, from the homeless to the unemployed), and the subjective violence of newly emerging ethnic and/or religious (in short: racist) fundamentalisms. They may fight subjective violence, but liberal communists are the agents of the structural violence that creates the conditions for explosions of subjective violence. The same Soros who gives millions to fund education has ruined the lives of thousands thanks to his financial speculations and in doing so created the conditions for the rise of the intolerance he denounces."

Bem, o final parece não ter sido tão distorcido assim(apesar de ter sido omitido), mas o que dizer do início? Zizek parece demonstrar que o Forum Social Mundial tem se esvaziado, e algumas dessas pessoas:

"Some of them, at least, moved to Davos. The tone of the Davos meetings is now predominantly set by the group of entrepreneurs who ironically refer to themselves as ‘liberal communists’ and who no longer accept the opposition between Davos and Porto Alegre: their claim is that we can have the global capitalist cake (thrive as entrepreneurs) and eat it (endorse the anti-capitalist causes of social responsibility, ecological concern etc). There is no need for Porto Alegre: instead, Davos can become Porto Davos."

Zizek indica, como vem indicando há muito, que a esquerda liberal encontrou seu "aconchego" nos braços do capitalismo internacional. E quem seriam esses liberais-comunistas dispostos a bancar teses da esquerda?

"The usual suspects: Bill Gates and George Soros, the CEOs of Google, IBM, Intel, eBay, as well as court-philosophers like Thomas Friedman."

Notem que o artigo de Sader começa apenas no terceiro parágrafo do texto de Zizek. Ele simplesmente ignora a denúncia de esvaziamento ocorrida no forum social mundial, no sentido de se fazer oposição radical à globalização, e o fato desse mesmo forum ter se tornado basicamente um outro lado da mesma moeda de Davos. E pior, ignora o resto do parágrafo de Zizek:

"The true conservatives today, they argue, are not only the old right, with its ridiculous belief in authority, order and parochial patriotism, but also the old left, with its war against capitalism: both fight their shadow-theatre battles in disregard of the new realities."

Será que Sader ignora esse trecho por se encaixar, em certo sentido, nos rumos que o governo Lula tem tomado ultimamente? Pois logo depois retoma o final do parágrafo:
"The signifier of this new reality in the liberal communist Newspeak is ‘smart’. Being smart means being dynamic and nomadic, and against centralised bureaucracy; believing in dialogue and co-operation as against central authority; in flexibility as against routine; culture and knowledge as against industrial production; in spontaneous interaction and autopoiesis as against fixed hierarchy."

A seguir, Sader continua a meramente traduzir o artigo. Mas não resiste e volta a omitir trechos importantes:

"Liberal communists like to point out that the decision of some large international corporations to ignore apartheid rules within their companies was as important as the direct political struggle against apartheid in South Africa. Abolishing segregation within the company, paying blacks and whites the same salary for the same job etc: this was a perfect instance of the overlap between the struggle for political freedom and business interests, since the same companies can now thrive in post-apartheid South Africa."

Será que esse trecho foi omitido devido ao debate de quotas raciais no Brasil?

"Liberal communists love May 1968. What an explosion of youthful energy and creativity! How it shattered the bureaucratic order! What an impetus it gave to economic and social life after the political illusions dropped away! Those who were old enough were themselves protesting and fighting on the streets: now they have changed in order to change the world, to revolutionise our lives for real. Didn’t Marx say that all political upheavals were unimportant compared to the invention of the steam engine? And would Marx not have said today: what are all the protests against global capitalism in comparison with the internet?"

Uma pesada crítica à ilusão de 1968, denunciada por Hobsbawm como revolta individualista sem conteúdo político(leia-se, sem base socialista) e que agora se apresenta como base cultural perfeita para esse capitalismo globalista revolucionário, pois modifica a forma pela qual as pessoas se relacionam, sem mexer na estrutura através da qual essas mesmas relações se dão. A diferença é vital: mudar a forma é modificar o meio, sem que o sistema mude. Mas o público brasileiro fica sem saber desse debate.

E agora o trecho mais controverso do texto:

''We should have no illusions: liberal communists are the enemy of every true progressive struggle today. All other enemies – religious fundamentalists, terrorists, corrupt and inefficient state bureaucracies – depend on contingent local circumstances. Precisely because they want to resolve all these secondary malfunctions of the global system, liberal communists are the direct embodiment of what is wrong with the system. It may be necessary to enter into tactical alliances with liberal communists in order to fight racism, sexism and religious obscurantism, but it’s important to remember exactly what they are up to."

Zizek proclama que a esquerda reorganize sua forma de enxergar o mundo, se despredendo de sua dependência do liberalcomunismo. Ao mesmo tempo em que admite a possibilidade de alianças táticas para combater certos reacionarismos, Zizek não deixa claro se é válido para a esquerda aliar-se com fundamentalistas religiosos, terroristas e burocracias corruptas e ineficientes para combater o liberalcomunismo. Esse trecho é o mais revelador da impotência analítica da tese de Zizek: o liberalcomunismo é um mal, pois perpetua o capitalismo e o exalta como capaz de se autoreformar. Qual a capacidade, no entanto, dos outros inimigos considerados como locais, de se adequarem à teses reformistas? O critério que Zizek falha em aceitar é o que diferencia uma sociedade aberta de uma sociedade fechada, que é basicamente a igualdade de todos perante a lei, mesmo que se considere essa sociedade como injusta(a injustiça é estrutural, apesar de ser cometida por um homem em relação a outro); pois a sociedade que não possui essa igualdade pode ser injusta também, mas não existe possibilidade de reforma. Exemplos não faltam: Cuba, Irã, Coréia do Norte, o antigo Afeganistão.

Zizek é um pensador controverso, sem dúvida, e suas teses variam muito facilmente entre o ridículo e o essencial. A "tradução/resumo" feita por Sader de seu texto, no entanto, é absurdamente mentirosa e tendenciosa: omite os trechos polêmicos, que colocam em cheque idéias que Emir defende(o governo lula, o forum social mundial como alternativa revolucionária à globalização,1968 como paradigma da nova esquerda revolucionária, a caracterização do capitalismo globalizado - ou neoliberalismo - como racista, homófobo, etc) e que bate de frente com muitas teses caras à esquerda brasileira.
Vejam bem, eu não tenho absolutamente nada contra Emir expressar essas idéias - apesar de considerá-las estapafúrdias, ele possui todo o direito de propagá-las. O que questiono aqui é o fato dele ter se utilizado do texto de Zizek para criticar os elogios que Bill Gates recebeu da mídia, quando na verdade o texto é muito mais profundo que isso.

Ele também não é obrigado a traduzir integralmente o artigo original. Mas então deveria deixar claro que:

- o artigo em seu blog, embora traduzido, não é integral

-o original se encontra disponível na internet
Repito, sem esse esclarecimento, o leitor é levado a pensar que o texto apresentado:
-foi baseado no original de Zizek e as reflexões são de responsabilidade de Sader(um dos comentários ao post foi: "Nota 100. Quando não está propagandeando o governo Lula, o Emir Sader volta a ser um grande intelectual de esquerda.")
-o texto é mera tradução do original de Zizek
As duas alternativas são mentirosas: Ou Sader leva crédito por aquilo que não escreveu, ou não é responsabilizado pelo que fez.
Emir Sader, descanse em paz, você é um defunto intelectual.
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Texto original do Zizek aqui
Versão bisonha feita por Sader aqui

Um comentário:

Anônimo disse...

Vou te dar a honra de receber um comentário. Já que ninguém comentou ainda.
Bem. Antes, uma pequena ressalva. Em Cuba existe igualdade perante a lei. Isso é óbvio não?
Mas essa não é a questão. Obviamente sobre o relacionamento do pensamento revolucionário com fundamentalismos e "liberal-comunistas" Zizek prefere refutar ambos. É como ele coloca no seu "portas da revolução", não se pode aceitar as oposições oferecidas pela direita. Não se trata da oposição entre fundamentalismo e liberalismo, e sim da oposição do pensamento revolucionário e do capitalismo. Até porque, Zizek argumenta com grande razão que os novos fundamentalismos (extrema direita na Europa, conservadorismo cristão nos Estados Unidos, fundamentalismo islâmico) são respostas a própria dinâmica de desterritorialização do capitalismo liberal. Basta pensar no caso brasileiro, onde o fundamentalismo cristão vem crescendo. As igrejas neo-pentecostais, por exemplo, avançam devido aos problemas sociais causados pelo capitalismo (é só olhar para as teologias da prosperidade) ou pela desintegração identitária provocada pela sua dinâmica cultural. Zizek indica que o islamismo era a mais tolerante das grandes religiões monoteístas até entrar em choque com a dinâmica desintegradora do capitalismo.